CAMINHOS DE PAPEL

domingo, janeiro 31, 2010

POEIRA DO TEMPO

ESTA CRÔNICA FOI ESCRITA ANOS ATRÁS, NUMA DE MINHAS PRIMEIRAS VISITAS À SÃO LUÍS DO PARAITINGA.  NESSA OCASIÃO, OS ESTADOS UNIDOS DEFLAGRAVAM A OPERAÇÃO "TEMPESTADE NO DESERTO",  INVADINDO O IRAQUE E IMPONDO A SUA "PAX ROMANA" DE ENFIAR A DEMOCRACIA PELA GOELA ABAIXO DE QUE OS DESAFIASSEM.

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Mal entrando na cidade e ainda com o carro sacolejando nas ruas com calçamento de pedra de São Luís do Paraitinga, passei a observar o casario antigo daquela que, um dia, foi chamada por D. Pedro II, de cidade-presépio.

Estacionei o carro na rua principal e fui andando por ali, apenas olhando. Os antigos sobrados estão bem conservados; são o orgulho da cidade, assim como suas festas. Fazendo contraponto ao dia cinzento, as cores alegres dos prédios passavam uma impressão de bem-estar naquelas ruas estreitas, levando-me a esquecer as notícias frescas sobre o distante Iraque.

Como turista que se preza, saquei da câmera e comecei a fotografar. Um ou outro morador prestava um pouco mais de atenção em mim, viajante perdido num sábado pós-Carnaval. E era verdade; com um tempo prometendo chuva parecia haver raros forasteiros pisando nas solenes pedras que abrigam todos os anos movimentadas festas de Momo e a Festa do Divino Espírito Santo.

Vestígios da alegria recente ainda existiam. Perto de uma casa vi dois bonecões e não resisti em tirar uma foto. Da janela, um senhor olhou-me sério e curioso, mais isto que aquilo. Ao pedir-lhe licença para fotografá-los, abriu um vasto sorriso, concordando.

Após eu ter clicado, ele se aproximou para dois dedos de prosa, contando que aqueles bonecos haviam saído no carnaval recém-findo. Fizeram sucesso dançando as marchinhas tocadas nos três dias de Momo e eu fiquei sabendo só tocarem esse gênero de música nos desfiles carnavalescos, uma tradição local. Não escondeu seu entusiasmo ao falar da Festa do Divino, que em maio voltaria a alegrar a cidade. Proseamos por meia hora até eu retornar à bucólica praça onde alguns idosos jogavam dominó, tão alheios à minha pessoa e ao mundo, levando-me a pensar sobre o que saberiam eles sobre o resto do planeta. Tudo bem; não estavam isolados da civilização; era possível ver que muitas casas tinham uma antena parabólica sobre o telhado trazendo notícias de guerra num distante país de mil e uma negras noites.

Meu inesperado interlocutor de momentos antes, contudo, mostrara-me que o mais importante era mesmo o contato humano, pouco importando àquela gente que um simples apertar de botões vermelhos acabaria com o bucolismo que os cercava e com a guerra nas areias do deserto iraquiano.

O tempo voltou a fechar e uma fina garoa começou a umedecer as pedras lisas. Voltei ao carro e, saindo da cidade, dei uma última olhada pelo espelho retrovisor.

Lá atrás, perdida nos contrafortes da Serra do Mar, a cidadezinha aos poucos ia desaparecendo no meio da neblina, como se esta fosse uma tempestade de areia.

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Por uma dessas coisas que o destino não explica, em janeiro deste ano, parte da cidade foi arrasada pelas chuvas de verão.   O que se espera não é ajuda política como andam fazendo por aí.  A cidade e seus moradores querem seu patrimônio de volta.   Apenas isso.

terça-feira, novembro 24, 2009

SANDRA, ANTES E DEPOIS

Tripla premiação em 1º lugar em Concurso Literário da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, em 2002, juntamente com "Clarice" e "Considerações à hora do jantar".

"(trabalhos  registrados no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional.   Reprodução autorizada desde que mencionada a fonte".


O temporal acabado de cair fez descer a temperatura, coisa nem tão incomum assim em São Paulo num fim de dezembro, mas suficientemente incômoda para me fazer atravessar a rua até o bar defronte ao escritório, pensando num bom conhaque. Precisava de uma bebida que me compensasse da persistente chuvinha e depois de driblar pedestres apressados e automóveis imobilizados entrei, indo me sentar num lugar de onde podia observar através da grande janela a azáfama tragicômica daquelas pessoas na vã tentativa de fugir do ano se esvaindo.
A bebida pouco mexeu com meu estado de espírito, em nada parecido com o movimento do lado de fora do vidro ou mesmo ali dentro, onde risadas e conversas do tipo “tudo de bom no ano que vem” indicavam uma festa acontecendo, fazendo com que eu me esforçasse para ficar imune àquela aleivosia mascarada com rodadas infindáveis de chope e porções de fritas, atitude justificável, aliás, para alguém saído há menos de um ano de um casamento que até então se arrastava procurando por uma sobrevida.
Meus pensamentos foram interrompidos quando Sandra entrou no bar, quase sem ser notada em meio daquele bulício. Entre suas virtudes aparentes, incluía-se a de ser discreta em qualquer ambiente onde se apresentasse. Indo direto ao caixa pediu um maço de cigarros e enquanto aguardava pelo troco, correu os olhos ao redor parecendo explorar aquele terreno, contudo num visível cuidado de passar despercebida.
Nossos olhares se cruzaram e ela permitiu-se um leve sorriso, ao qual respondi com outro igual e levantando ligeiramente a taça de conhaque num cumprimento.
Enquanto Sandra guardava o troco em sua bolsa, fiquei a observá-la com um interesse indefinido. Na verdade, sua presença pouco chamava a atenção das pessoas além daquilo que lhe convinha, visto ser a secretária da presidência da empresa, levando-a também a vestir-se sempre de maneira sóbria mas elegante. Ali pelos quarenta, como eu, não obstante bonita e um certo charme, dificilmente passaria por uma femme fatale, daí não ser lá dentro motivo de comentários mais apimentados. Trabalhava um andar acima do meu, e nossos contatos eram marcados por assuntos profissionais; apenas ocasionalmente conversávamos sobre outras coisas, fosse no café dos funcionários no terceiro andar ou no elevador. Ao sair, entretanto, no lugar de seguir pelo caminho mais direto até a porta, enveredou por entre as mesas agora tomadas e parou perto de mim. Olhei-a surpreso e estupidamente calado. Foi ela quem falou primeiro:
— Parece que você está um tanto desanimado neste fim de ano.
Tratei de procurar alguma tranqüilidade e desfazer a impressão de desatenção:
— É verdade. Essas festas pouco me animam. — Sem conseguir raciocinar melhor, disse sem muita convicção: — Parei para um conhaque e passar o tempo. Pelo menos até essa chuvinha diminuir.
Sentindo-me idiota com essa conversa boba, percebi a necessidade de pelo menos dar mostras de educação:
— Não quer sentar-se?
Ela aceitou, não deixando de me surpreender. Até onde eu sabia, ninguém conseguira ou tentara algo induzindo-a a deslizes comprometedores. Talvez por isso, hesitei sobre o que fazer diante dessa situação incomum. Tratei então de oferecer-lhe um conhaque, aproveitando o pretexto do entardecer garoento .
Nova surpresa por aceitar. Chamei o garçom, pedi-lhe a bebida e uma outra para mim.
Abrindo a bolsa, ela pegou do maço de cigarros, abriu-o e colocou um nos lábios. Outra vez fiquei no papel de bobo, pois não tinha como acendê-lo. Sandra aliviou meu embaraço perguntando com delicadeza se me incomodaria por fumar, mas ao mesmo tempo pegando seu isqueiro.
Depois de uma tragada com visível prazer, jogou a cabeça para trás soprando a fumaça, fazendo-a subir em meio a tênue luz do ambiente já perdendo a claridade externa. As bebidas chegaram, ela pegou a sua e provou-a de olhos fechados como se estivesse experimentando do néctar dos deuses. No momento seguinte, voltou ao mundo terreno:
— Que estranha maneira de fechar o ano. A não ser que eu me engane, você está realmente desanimado.
Concordei, balançando a cabeça:
— Se não a conhecesse como secretária, diria que é psicóloga. Ou vidente. Matou a charada só de olhar para mim.
— Nem uma coisa, nem outra, sorriu levemente. Uma dedução, apenas.
— Você está certa, disse-lhe antes de tomar um pouco da bebida. — Tenho pouca vontade de festejar seja lá o que for. O ano está indo embora, mas o que irá mudar além de alguns dígitos no calendário? Dê uma olhada ao nosso redor, aqui dentro ou lá fora: na semana que vem, e na outra, e na outra, tudo continuará do mesmo jeito. Inclusive nós mesmos, concluí fazendo uma apologia do desânimo.
Outra vez o sorriso suave, mostrando-se compreensiva:
— Por experiência própria, devo concordar com você. Ainda assim, não há ninguém com quem repartir isso? Quero dizer, esse estado de espírito sendo dividido com alguém...
Tive de devolver-lhe o sorriso. Mesmo eu sendo pouco cavalheiro, Sandra conseguia me mostrar como as pessoas são surpreendentes. Pelo que conhecia dela, de ver ou ouvir falar, nunca esperaria uma conversa tomando esse rumo, até porque minha vida não era um segredo guardado a sete chaves. Por outro lado, sabia ser precipitado tirar qualquer ilação daquela pergunta jogada de forma quase displicente no ar, pois salvo engano maior, percebia-lhe a necessidade de conversar com alguém e, como eu, ainda tateava à procura das palavras certas. Assim pensando, conclui mal não haver em falar-lhe sobre meu visível desânimo, contar coisas de uma vida dissolvida num casamento medíocre, acabando por me levar até alguma mesa de bar de quando em vez.
Com os braços cruzados sobre a mesa permaneceu ouvindo e, eu diria, com interesse. Depois, pegou novamente da taça e após molhar os lábios com o líquido, ficou a olhá-lo. Seus olhos castanhos pareciam refletir a cor da bebida.
— Eu também tenho pouco para comemorar, comentou sem poder esconder alguma tristeza na voz. Você não estava de todo errado quando me julgou psicóloga. Contra a vontade de meu pai, vim para São Paulo tentar a USP e por quase dois anos fiz das tripas coração em trabalhinhos aqui e ali para manter meus sonhos. No fim, desisti e acabei indo parar nessa empresa. Felizmente, consegui me dar bem, mas... o mundo perdeu uma doutora. Como compensação, completou sorrindo agora de um jeito irônico, ganhou uma eficientíssima secretária executiva.
Devagar, tomou outro tantinho do conhaque e permaneceu balançando o líquido em seu recipiente. Fiquei olhando com um misto de curiosidade e carinho, aquela mulher ali à minha frente, em muito parecida comigo. Duas pessoas quebrando a cara no mundo e esperando acontecer algo para aquecê-las da garoa das ruas, daí ficarmos ainda algum tempo conversando sobre nossas vidas, experiências, como se fôssemos velhos amigos. Tínhamos várias coisas em comum, nos deixando à vontade e levar-me num ímpeto, talvez incentivado pelo conhaque, a perguntar-lhe:
— O que diria de passar a noite de Ano Novo comigo?
Tendo voltado a girar a taça no ar, Sandra parou esse movimento aí mesmo. Seus olhos adquiriram tal brilho, como se o conhaque estivesse sendo flambado. Pareceu enrubescer e não me surpreenderia se o jogasse em mim, ou simplesmente se levantasse e fosse embora. No entanto, era uma mulher cheia de surpresas e eu descobria isso aos poucos. Colocou devagar o recipiente sobre a mesa e fitou-me nos olhos de forma tão intensa, desarmando-me a ponto de não conseguir antever sua reação a partir daquela pergunta.
— Você disse que quer passar a noite comigo?
— Eu disse que quero passar a noite de Ano Novo com você.
Nesse momento, eu a senti hesitar diante desse jogo de palavras, o que me animou a levar a proposta adiante.
— Certamente, já notou sermos duas pessoas sem alguém com quem repartirmos nossas tristezas, mão tocando mão... Enfim, nenhum ombro a servir de apoio. O que proponho é ficarmos juntos na passagem do ano, estourarmos um champanhe à meia-noite e depois continuarmos nossas vidas.
— Tudo platonicamente?
— Tudo platonicamente.
Ela cruzou os braços sobre a mesa e ficou a me olhar com uma expressão que não se definia entre a mera surpresa, indignação ou se estava divertindo-se com aquilo tudo. Não demorou, contudo, a chegar a uma conclusão:
— Para quem não quer festejar coisa alguma, você está sendo bastante contraditório, mas... a ideia me agrada  Em seguida riu baixinho, comentando: — Devo estar maluca. Meu pai teria um enfarte se ouvisse isso.
Sorri, sem nada dizer. Ela prosseguiu:
— Eu tinha idade e juízo suficientes para sair de casa; penso ter também agora para aceitar sua proposta. Calou-se por instantes e depois completou:
— Muito bem. Nesse caso, gostaria que fosse em meu apartamento, se não tiver nada contra. Respirou fundo, como querendo reforçar sua decisão: — Talvez eu esteja mesmo precisando esquecer mais um ano se acabando e comemorar a chegada do Ano Novo como as pessoas... hum... normais.
Tomei outro gole maior do conhaque procurando reafirmar meu autocontrole, por instantes parecendo balançar:— Não tenho nada contra. Nem mesmo de nos portarmos como pessoas normais. E aproveitei para emendar: — Eu levo o champanhe.
Ela tomou o restante da bebida antes de concluir:
— Eu o esperarei às nove. Farei uma comidinha gostosa, conversaremos ou, se preferir, analisaremos nossas frustrações, e esperaremos pelo Ano Novo.
Concordando, tomei o restante do conhaque e enquanto esperava pela conta peguei-lhe o endereço. Despedimo-nos com um beijo no rosto e a acompanhei até a porta. Fiquei vendo-a atravessar a rua em direção ao estacionamento e pensando no que estava fazendo a ela. Ou seria o contrário?
Iria descobrir logo, pois faltavam apenas duas noites para se fechar o ano. E, o óbvio, começar outro. Só não imaginava como seria.

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Pontualidade não está entre minhas parcas virtudes, pois só fui tocar a campainha do apartamento de Sandra depois das nove e meia. Ao contrário da noite anterior, esta recuperara o calor habitual de qualquer fim de dezembro e havia o prenúncio de chuvas.
Ela abriu a porta junto com o sorriso de quem nem de longe ameaçava uma censura pelo meu atraso. Vestia um conjunto de saia e blusa, apropriadamente brancas, diferindo em muito dos trajes formais do escritório e deixando-a bem mais jovial, diferente daquela secretária circunspecta
— Flores! — exclamou surpresa. — Pensava não existirem mais homens que ainda fizessem dessas coisas, disse enquanto apanhava o maço de rosas vermelhas que eu lhe oferecia:
— Meio convencional, penso. Mas achei que iria gostar.
Após guardar o champanhe na geladeira, tratou de ajeitar as rosas no vaso sobre um móvel, enquanto eu examinava o ambiente. Sala razoavelmente grande; um confortável sofá, uma estante com livros diversos e um inesperado piano de armário.
— Não sabia que gostava de música, comentei embora soubesse também não conhecer quase nada sobre ela.
— Ajuda a passar o tempo e a esquecer algumas coisas, disse-me num tom enigmático ao qual não dei muita importância. — Fique à vontade; o jantar está quase pronto.
Em pouco tempo estávamos à mesa saboreando o jantar sem maiores requintes, mas delicioso, lembrando-me um ar caseiro num passado perdido e do qual eu procurava escapar. Mesmo pensando em caminhar noutra direção, não tinha a certeza do que realmente queria. “Tudo platonicamente”, tentei acreditar. “Tudo platonicamente”, repeti a mim mesmo.
Sandra colocava o garfo na boca com delicadeza e, a cada movimento para apanhar algo sobre a mesa, a blusa, que normalmente se permitiria dois botões abertos, tinha um terceiro, fazendo nesses movimentos deixar aparecer ligeiramente a junção dos seios roliços e instigantes. Entretanto, fazia isso com tal naturalidade e não me deixava pensar serem gestos premeditados. Não conseguia vê-la ardilosa.
Findo o jantar, ela pôs à mesa a fruteira de onde retirou um cacho de uvas. Enquanto conversávamos, ela pegava os grãos e um a um levava-os à boca, distraidamente, pousando-os com delicadeza nos lábios carnudos e deles retirando sua polpa de forma lenta e decididamente sensual. Ainda assim, os belos olhos castanhos nada deixavam transparecer e se estivesse fazendo uma espécie de jogo sabia estar guardando seus trunfos para a hora certa.
Na verdade, estaria mesmo ou seria eu que estava querendo me convencer disso?
Mais tarde e já retirada a mesa fui sentar-me no sofá. Sandra dirigiu-se ao aparador e em uma bandeja de prata onde havia uma garrafa de licor e alguns cálices, colocou da bebida em dois deles e veio sentar-se perto de mim. Ofereceu-me a minha, fizemos um discreto brinde e provamos de seu gosto. Como se isso fosse hábito arraigado nela, o fez de olhos fechados parecendo aproveitar de toda sua essência.
Eu a observava fascinado. Seus gestos lembravam um ritual ao qual ela se entregava de corpo e alma. Sentado à curta distância, parecia-me sentir o mesmo êxtase que a dominava. O corte na lateral da saia, deixava à mostra pouco mais que palmo e meio da coxa cruzada sobre a outra perna e novamente ocorreu-me a idéia de um jogo, no qual os contendores procuravam ter domínio mútuo total. Como por instinto, eu tentava fechar minhas defesas. Só não sabia contra o quê.
A conversa continuou fluindo, descompromissada. Voltamos novamente a nossos passados, levados à baila em conta-gotas como se quiséssemos nos poupar. Porém, era evidente o assunto servir apenas de pretexto para que cada qual estudasse o outro, planejando o próximo lance. Era esta a impressão reinante e eu com a nítida sensação de estar me deixan-do tomar por uma paranóia inexplicável, se é que paranóicos sabem que o são.
Sandra levantou-se, pegou meu cálice vazio e colocou-o juntamente com o seu na bandeja, indo em seguida até o piano e sentando-se na banqueta. Como se fosse uma criança, a fez dar duas voltas, o que em outras circunstâncias, não nesta noite, talvez me surpreendes-se. Sorrindo, olhou para mim parecendo pedir desculpas por uma travessura. Eu não só a desculpava, como achava tudo aquilo delicioso. Invadia-me uma sensação agradável em vê-la assim descontraída, mas não me escapava o detalhe de ela ter um perfeito controle de seu savoir-faire.
Voltando-se para o piano, levantou a tampa do teclado. Olhou-o como um duelista escolhendo suas armas e dedilhou algumas notas, de imediato fazendo-me lembrar a Sonata Kreutzer.
Embora suas atitudes sugerissem descontração, imaginava-a uma habilíssima enxadrista, astuciosa no movimento de suas peças mesmo eu entendendo naquela obra caber ao violino propor o desafio.
Estava ali o nó da questão. Nessa aparente inversão de papeis, cabia-me aceitar o repto e enfrentá-la em seu terreno, aceitando os termos. Tornava-se impensável recuar, pois cada movimento seu sempre se antecipava aos meus. Em breves segundos, tentei recompor os acontecimentos. O que, então, deveria esperar desde aquela noite no bar? Numa fração de tempo me vi possuído de inominável ridículo. Como podia ter pensado que nosso encontro se resumiria a um jantar, um espocar da garrafa de champanhe e um até breve? Na verdade, ela era quase uma desconhecida quando a convidei para o conhaque, mas agora ficava claro ter sido disparado um processo emocional, cujas conseqüências eu ainda não conseguia medir.
O tempo tornou-se meu aliado. Mostrei-lhe o relógio dizendo faltar pouco para a meia-noite. Ela sorriu e foi buscar o champanhe e duas taças. Fomos até o terraço tendo pela frente a bela vista da região destacada pela beleza dos fogos de artifício explodindo em mil cores, indiferentes à chuva contrapondo-se àquele colorido. Fiz saltar a rolha que voou para o asfalto molhado, lá embaixo.
Servimo-nos da bebida, erguendo as taças num brinde cheio de presságios.
— Feliz Ano Novo, disse-lhe. Ato contínuo, depositei um curto e suave beijo em seus lábios.
Seu sorriso não revelou surpresa e complementando o reflexo do colorido da noite nos olhos, abriu caminho a palavras ditas com doçura:
— O mesmo para você.
Alguém impensadamente disparou um artefato lá da rua e, subindo por entre os prédios, veio estourar perto da sacada onde nos encontrávamos. Sandra deu um gritinho de susto agarrando-se instintivamente em meu braço, assim permaneceu enquanto assistíamos, calados, ao espetáculo de cores e sons. Agradava-me sentir o toque da mão cálida, ainda trêmula, e poderia jurar estar mesmo sentindo o pulsar de seu sangue no ritmo das explosões.
A barulheira foi arrefecendo e voltamos para a sala. Ela serviu mais um pouco da bebida e inesperadamente disse:
— Não vá.
Olhei-a, calado a princípio, pois tal como no jogo, surpreendia-me colocando meu rei em xeque e levando-me a procurar a defesa:
— Estamos fugindo ao nosso trato, disse-lhe como numa defesa mal planejada.
Em momento algum ela sentiu-se acuada e sua proposta surpreendeu-me:
— Ficaria mais tranqüila se dormisse aqui. Seja sensato: é noite de Ano Novo. Chove. Muitas pessoas beberão além da conta e sairão dirigindo pelas ruas pondo em risco suas vidas e a de outros. Há um quarto de hóspedes onde você poderá ficar à vontade. E completou com pinceladas de malícia: — A menos que tenha algo contra.
Sorri, sem dizer nada, mas nesse momento a proposta se mostrava irrecusável. Não me passava pela cabeça, absolutamente, questionar o trato desfeito.
Depois de ajudá-la a pôr alguma ordem na sala e na cozinha, ainda conversamos um pouco mais, tudo com aquela naturalidade típica de uma rotina de anos; um perfeito clima platônico.
Ela ajeitou com presteza o quarto de hóspedes, deixando que me instalasse realmente como hóspede. Fechei a porta e sentei-me na beira da cama, estudando o pequeno ambiente: um armário, uma mesinha de cabeceira, uma escrivaninha com um microcomputador (que segredos haveria em sua memória?), um pequeno televisor e poucas coisas mais.
Tirei a roupa e deitei-me sobre o lençol macio, recendendo a novo. Deixei apenas a luz do abajur iluminando o ambiente e ali fiquei, estático, mãos cruzadas sob a nuca, pensando no inusitado da situação, quase surreal. Por mais que quisesse pensar o contrário, via naquilo tudo mais outro lance do jogo e, a exemplo de qualquer jogo, deveria haver a defesa ou o contra-ataque. Eu simplesmente não sabia qual seria a jogada seguinte.
Quase duas da manhã apaguei a luz mas, conciliar o sono, quem conseguiria? Percebi que Sandra fora para seu quarto, ao lado. Na noite agora silenciosa, eu podia imaginar cada movimento; uma porta de armário se abrindo, sapatos sendo jogados a um canto, um cabide caindo ao chão. Visualizei-a despindo-se: a blusa sendo largada sobre uma cadeira, a saia colocada num cabide e dependurada no móvel. Fechei os olhos e tentei vê-la em suas roupas íntimas. Brancas, provavelmente. Depois, em gestos lentos desabotoando o sutiã, jogando-o sobre a cama e, finalmente, a derradeira peça de roupa descartada. Pensei em sua nudez, ela sempre tão recatada e jamais dando ensejo a especulações e desejos mal resolvidos.
A mesma silenciosa noite me deixou entender que ela se deitava. Podia perceber o amassar do colchão e um ligeiro rangido da madeira da cama logo aquietada.
Eu estava sem sono e poderia apostar que do outro lado da parede o mesmo ocorria. O mostrador luminoso do relógio revelou-me o tempo terrivelmente lento: duas e quarenta. Do quarto contíguo vinha o ruído abafado do corpo se revirando, insone, na cama delatora. Em que estaria pensando? Voltou-me ao pensamento a idéia da Sonata e, era forçoso reconhecer, desagradou-me imaginar que se ela a executava bem, é porque haveria — ou teria havido — alguém a fazer-lhe contraponto.
Três e cinco, ouvi-a abrindo a porta do quarto. Alguns segundos de silêncio e depois o clique-clique do isqueiro. Notei seu caminhar, mesmo descalça, pela sala. Depois, a porta do terraço aberta com cuidado e logo fechada, talvez por causa do frio vindo com a madrugada úmida exigindo calor para todos os corpos.
Eu estava tenso. Imaginei-me levantando, um pretexto qualquer, e encontrando-a sentada no sofá, e a surpresa descaradamente fingida de parte a parte. E depois, tudo acontecendo naturalmente.
A porta de seu quarto fechou-se novamente, com o cuidado de tentar não deixar isso transparecer. Fiquei olhando através do escuro, como se elaborasse um lance para jogar naquele negrume, na incerteza se deveria ser uma tática defensiva ou de ataque. Uma indecisão que me atormentava.


Acordei com a claridade do sol querendo invadir o ambiente. Num primeiro momento, fiquei sem entender nada até me localizar no tempo e espaço. Espreguicei-me e enquanto esfregava os olhos, tudo foi repassado por minha cabeça vindo feito um vagalhão de encontro à minha memória.
Vesti-me e saí para a sala. Ao abrir a porta, o cheiro forte de café despertou todos os meus sentidos. Encontrei Sandra na cozinha; calça de moleton e uma camiseta, fresca e linda como eu jamais a vira em todos esses anos, tão perto de mim e ao mesmo tempo tão distante.
— Dormiu bem? perguntou.
— Feito um anjo, brinquei.
— Como eu, sorriu numa deliciosa mentira.
Sentamo-nos para o café, misturado com frases soltas na mesa entre biscoitos e croissants e, como se houvesse um acordo tácito, sem menções à noite anterior. Servi-me da bebida quente, adicionei leite e açúcar e enquanto brincava com a colherinha, fiquei observando-a passar manteiga no pão tostado que a fez derreter-se. Sandra levou a fatia à boca e mordeu-a com delicadeza para, em seguida, apertar os lábios como querendo tirar deles o excesso do creme.
Nesse instante, mergulhei fundo naqueles olhos cor de mel, com a certeza de o xeque-mate ter sido dado e de que ela sabia que o faria, desde aquela noite no bar quando decidiu aceitar o desafio e mover suas pedras, para deixar num outro tempo duas obscuras histórias de vida.

quarta-feira, junho 10, 2009

REATIVANDO O BLOG (10/06/2009)


O texto abaixo foi publicado no jornal de bairro "Gazeta do Tatuapé", por alguem cujo nome nem vou citar - pois não merece aparecer - e o texto seguinte, foi uma resposta minha, publicada também nesse jornal:



"O MAIS CRUEL DOS MALES" (Edição de 23 de maio)

Sr. Redator:

"Aos moços, dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as opções são poucas. Ou morrer ou lutar contra a velhice. E morrer não seria a melhor solução. E a luta sempre resulta em partida pertida e inglória.
Entre os processos da natureza, a velhice é o mais cruel; Implacável. Insidiosa, ataca por todos os lados e abre as portas para as moléstias mortais. É uma espécie de HIVa longo prazo. Ataca o coração, o pulmão e todas as demais vísceras. Não esqueçamos da fiação arterial e venosa, da coluna, sem falar na atividade cerebral e na osteoporose.
Os moços compadecidos, os quarentões assustados e os próprios velhos apelam para tudo e inventam essas bobagens de terceira idade, clubes e associações que trabalham contra o isolamento e tristeza. Ninguém acredita naquilo.
Você já viu um velho casal, vestido à moda dos anos 30, tentando dançar um tango? É patético, apesar de alguns considerarem docemente ridículo. Inventam várias teorias sobre a velhice. Ginástica, dieta, malhação, corrida, etc.
Veja a situação da bela mulher, rica, endeusada, ao se deparar com as primeiras rugas. E aquelas ruguinhas junto aos lábios? Dr. Pitanguy era mestre em disfarçar anomalias, porém o milagre é passageiro.
Não há milagre permanente. Esticam a pele e fazem um "peeling", que é uma raladura na cutis. Lindo, a princípio, mas efêmero. Com o tempo, já não há mais onde esconder as cicatrizes atrás das orelhas, ou no couro cabeludo, que aparado encurta, deixando a testa enorme, quase careca.
E os cabelos brancos? Eles são pintados, porém fogem do natural. Anatureza dá cor de fio em fio, cada um em sua tonalidade. Uns mais claros, outros mais escuros. O conjunto é uma obra inimitável, que profissional nenhum conseguirá obter. E, finalmente, se envelhece a cabeça, a inteligência, as idéias, a alma.
O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens ou mesmo excedê-las, mas não se convence. Fica até ridículo. Suas idéias são fruto do seu tempo, do que acumulou. Isso pode ser camuflado, mas não modificado. As células cerebrais não se renovam como as demais, afirmam os entendidos. Até mesmo idéias de gênios mortos envelhecem. Vide Freud,Einstein etc. Dizem os moços, com veemência: "eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa lucidez". Lucidêz? Afinal o que ele esperava? Que a gente já estivesse caduco? Que lástima".

Sendo assim, enviei a carta abaixo ao jornal, que a publicou na semana seguinte, em 24 de maio:

"CONFESSO QUE VIVI"

"Peço perdão a meus parentes, amigos, enfim, a todos que me conhecem. Ousei viver, assim como o fez Pablo Neruda, porém muito longe da ousadia a caracterizá-lo e que deixou marcas que jamais serão apagadas das lembranças a serem carregadas pela História.
Tenho 67 anos e ousei envelhecer. Tivesse eu lido, trinta ou quarenta anos atrás, as linhas que li na edição passada desta Gazeta, na página "O povo quer saber", intitulada "O mais cruel dos males", com certeza teria morrido em vida, pois segundo o que depreendi dessa leitura, avancei demais na minha ideia de viber em harmonia comigo mesmo, com aqueles que sempre me cercaram, e com o mundo.
Sou doente, posto que sou idoso. Toda minha experiência de vida não foi suficiente para me dar a perceber que insistia em procurar a morte lenta, aquele tipo de morte a que são condenados todos aquels que ousam encarar o tempo e sempre se adaptando a ele.
Aquela leitura me fez ver qye fui, e continuo sendo - já que isto é inerente à minha personalidade - um louco visionário (ou seria melhor dizer, um velho fora de seu tempo?), pois não acato as normas a que devem, segundo a leitura que fiz nesta página no domingo passado, se submeterem os assim chamados "velhos".
Será que devo me arrepender de frequentar academia, mesmo fazendo-o por orientação médica? Deveroa eu me sentir ridículo em fazer musculação, byke, body balance ou hidroginástica?
Nesse meio conheci outras pessoas, aumentei meu círculo de relacionamentos, tudo inadvertidamente, pois ainda não havia descoberto que há muito tempo eu deveria ter me acomodado num sofá, encarando os progra,as da tarde na TV e arruinando de vez minha coluna lombar.
Neste momento, me sinto ridículo por participa de clubes e associações que lutam contra o isolamento e a tristeza, pois só agora descobri que não é essa a diretriz que deveríamos nos impor. E eu que sempre acreditei nelas!
Danço tango mal-e-mal. Ainda assim, ousei dançar, caracterizado, juntamente com um grupo da extinta Oficina Cultural Raul Seixas, em plena praça Sílvio Romero, durante uma comemoração de aniversário do bairro. Mas como invejo aqueles que o fazem com maestria, não se importando se estão criando estereótipos. Ah, como os invejo!
Gosto, também, de ir à tarde a uma sessão de cinema, no shopping. Mas, segundo a conceituação agora dada aos idosos, fica ridículo querer ir assistir a nova saga dos tripulantes da Enteprise, ainda que faça isso já há quarenta anos.
Gosto de caminhadas e tenho feito trilhas com mochila às costas; acampei há até pouco tempo, e nunca me importei - ó ignorância minha - se essa era uma atividade reservada aos jovens e ágeis. Claro, juventude de espírito, descobri com aquela leitura na semana passada, é coisa para poetas e loucos, talvez mais estes do que aqueles. Não para pessoas como eu, que agora estão ganhando uma nova consciência de que velhice significa morte em vida. Pelo menos essa foi a lição passada nessa leitura.
Não vou mais tentar compreender Einstein. Não vou mais discutir Freud. O tempo deles, como aprendo agora, já passou. Não cairão totalmente no esquecimento, pois serão lembrados pelo ridículo atróz de persistirem em serem gênios após o seu tempo. Não mais lerei Neruda já que, insidiosamente, tenta nos convencer através de sua autobiografia, que viver vale a pena".

domingo, janeiro 18, 2009

ARCA DE NOÉ

CONTO CLASSIFICADO EM 4º LUGAR NO CONCURSO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, CUJO TEMA ERA "PLANETA TERRA, ANO 2050".
OS DEZ PRIMEIROS CONTEMPLADOS NAS CATEGORIAS CONTO, CRÔNICA E POESIA, TIVERAM SEUS TEXTOS PUBLICADOS EM ANTOLOGIA EDITADA PELA EdUFF.




É um ponto perdido na imensidão do Atlântico Norte, conhecido apenas pelos capitães das duas naves de guerra. Pode parecer estranho que seus respectivos comandos não saibam onde exatamente estão a fragata americana USS John Wayne e o submarino nuclear russo Nikita, este uma homenagem a um antigo líder político reabilitado pela terceira vez.
Neste ano de 2050 nada mais é de estranhar em vista do que está ocorrendo por todo o planeta. A exemplo do que ocorrera lá pela metade do século passado, a guerra fria ressurgiu, e agora o governo de cada um desses países tem razões de sobra para ficar atento às atividades do outro.
O presidente americano, segundo a política dos republicanos ortodoxos de seu governo, afirma serem os russos inimigos reais do mundo ocidental, eles que ao final do século XX viviam percorrendo a Europa com o pires na mão. Do lado russo, o presidente Putin II., filho bastardo de um líder político do início do milênio tem pensamento análogo.
A situação mundial, aliás, está caótica. Guerras pontuais, revoluções, tudo, enfim, é pretexto para que cada lado acuse o outro de tentar expandir seus domínios. A unidade européia balança perigosamente; tropas austríacas estacionadas na fronteira germânica alimentam essa paranóia. O islamismo ganha terreno nos países da comunidade. Por seu lado, Holanda, Dinamarca e Suécia, recém-convertidas, pregam o Alcorão à força. A Espanha tenta, também por meios violentos, separar-se do país basco.
Na América Latina a situação não é diferente. Os países que um dia formaram o que chamavam de Mercosul, vivem às turras. Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, têm em seus governantes, expoentes do crime organizado e brigam por uma posição melhor no mercado internacional de drogas. Só não se expandem mais porque os Estados Unidos mantêm um rígido controle sobre a mercadoria que entra em seu território e a Colômbia combate duramente o tráfico.
A Ásia, por seu lado, nunca deixou de ser problema; Índia e Paquistão estão em guerra e, recentemente, cada qual lançou uma bomba atômica no outro. Morreram cerca de 13 milhões de pessoas, o que no contexto indo-paquistanês não passa de mero detalhe. Tropas japonesas guardam a fronteira entre as Coréias do Norte, do Sul e do Centro, enquanto Taiwan ameaça pela enésima vez invadir a China continental.
Na África espalham-se as epidemias de laboratório e, em termos militares, seus países não pesam no panorama mundial. Destaque apenas para o apartheid imposto pelos negros às minorias brancas no Sul.
Mesmo a Igreja, em sua proverbial sabedoria, está sem saber o que fazer. O Vaticano, adquirido na década de vinte pela Igreja Universal do Reino de Deus, vem através do papa Macedo II pedir paz e compreensão entre os povos, mas a infinita sabedoria e fé do piedoso pontífice não é ouvida.
Qual o papel, então, dos dois navios perdidos no meio do oceano, a meio caminho entre a Europa e os EUA?
Seus comandantes já se haviam contatado semanas antes e, em segredo, elaboraram um plano visando assegurar a paz mundial. Era simples: cada uma dessas naves iria para a costa de seu respectivo país e ameaçaria jogar uma bomba nuclear em uma de suas maiores cidades, caso os dirigentes não se dispusessem a entabular conversações sobre paz. Simples e direto, achavam.
Mas não é tão simples como pensam. No navio americano não há unanimidade entre seus oficiais. O Imediato critica reservadamente seu capitão e não tem, realmente, intenções de ver seu país alinhando-se com a Rússia. Todavia, não consegue evitar que suas idéias cheguem a seu superior. Este o chama às falas:
— Muito bem, Sr. Jones. Quero saber aqui e agora quais são suas intenções face aos meus planos. Advirto-o que pretendo levar essa estratégia adiante, nem que para isso tenha de passar por sobre meus oficiais.
— Senhor, com todo o respeito, devo informá-lo que eu e outros elementos da tripulação não concordamos com seus planos. É preciso que saiba, também: faremos o que for necessário para impedir tal insanidade.
— Nesse caso, considere-se detido.
— De maneira nenhuma, senhor. E mais: o míssil que o senhor pretendia apontar para New York está direcionado para o submarino russo. Os russos, o senhor bem sabe, sempre foram nossos inimigos. Mesmo durante esses anos em que se pensava estarem eles realmente querendo a paz, na verdade tramavam contra a soberania, o modo de vida e a existência dos Estados Unidos da América.
— A idéia é absurda. Se estivessem tramando contra nosso país, teriam agido durante o governo Schwazenneger. Esse sim, um irresponsável.
— Eu e os homens que me apóiam faremos tudo para evitar esse contato. Portanto, considere-se detido o senhor. E, por favor, largue esse revolver.
— Jamais. Trate de modificar o alvo do míssil.
— Nunca. Dê-me a arma e...
Mostrando que fala a sério, o capitão não hesita em atirar em seu primeiro-oficial.
— Merda, capitão. O senhor... enlouqueceu...
— Afaste-se desse painel, Sr. Jones. É uma ordem.
— Para o diabo com suas ordens. Eu disse... que vou... impedi-lo.
Sangrando e quase sem forças, o Imediato alcança o botão de disparo do míssil e o aciona. O navio estremece quando a mortífera arma sobe aos céus e depois desce, mergulhando no oceano.
— Marujo, mexa-se, vocifera o capitão. Vá para o sonar. Acompanhe o míssil.
O trêmulo marinheiro assim o faz. Com os fones no ouvido e uma expressão parva, procura localizar o artefato. De repente, grita:
— Jesus Cristo! Acertamos o submarino, capitão.
Lívido, o comandante fica sem ação alguma enquanto olha pelas janelas da ponte. O mar parece em efervescência, causada pelo impacto da arma contra a nave russa. O marinheiro vem tirá-lo desse torpor:
— Capitão! Capitão! Eles contra-atacaram. Devem ter detectado o disparo antes de irem para o inferno e dispararam um míssil.
Ainda paralisado, o comandante vê o foguete russo sair das águas subindo na frente de uma esteira de fogo e depois, lá no alto, virar seu nariz na direção da fragata e descer com tudo.


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A trezentos e trinta quilômetros da Terra, a tripulação do ônibus espacial Bill Gates olha, estarrecida, as labaredas atômicas devastando a face do planeta. O dantesco espetáculo dura horas até que uma nuvem cinzenta acaba por cobrir tudo.
Silenciosos, ficam todos os doze tripulantes — dez homens e duas mulheres — a olhar para o nada. Debaixo das nuvens provavelmente a vida fora extinta. O comandante da espaçonave chama-os à razão:
— Bem, senhoras e senhores: parece que temos um problema. Tudo indica que não sobrou viva alma lá embaixo.
— O que faremos, coronel?
— Aquilo que a finada humanidade e o destino esperariam de nós: vamos repovoar a Terra.
— O QUÊ??? Indagam em uníssono as duas tripulantes.
Imagina-se que nas setenta e duas órbitas restantes muita discussão vai rolar.



segunda-feira, dezembro 01, 2008

CANÇÃO E POESIA

Numa noite dessas, depois de eu e minha mulher sairmos do mini-auditório do SESC da Avenida Paulista, caminhávamos até a estação do metrô conversando sobre a brilhante apresentação que havíamos acabado de assistir. Tínhamos visto uma aula-show com o, entre outras coisas, músico, professor de Literatura, crítico literário e musical, Arthur Nestrovski e a não menos versátil cantora Suzana Salles, na qual o tema abordado fora “O lugar da canção”.
Comentávamos, então, que esse gênero vem sendo, de certa forma, vítima de um desinteresse do público em geral, talvez porque em tempos de modalidades, digamos assim, mais esfuziantes, ou mais apropriadamente, de fácil deglutição, a grande mídia não tem lhe dado a devida importância, motivada por interesses nem tão difíceis assim de serem compreendidos.
Dentro dessa conversa, fiz uma comparação com a música clássica que, em meu entender, avança num caminho que ao longo do tempo chegará à sua extinção.
Talvez esteja eu com um viés pessimista em meu olhar. Porém, há quanto tempo não surge uma sinfonia do porte de uma Tragic, de Schubert, ou da Pathétique, de Tchaicovsky? Veremos um novo Beethoven? Alguma nação tem, hoje, um Wagner para enaltecê-la?
Num paralelo, a música popular sobrevive de maneira análoga. No meio do lixo midiático encontramos, ainda, compositores e trabalhos dignos de figurarem no rol das grandes obras musicais, pois se não lhes bastassem belas melodias, trazem poesia e um inconfundível lirismo em suas letras.
Foi através desse olhar que se deu a aula-show a que me referi. Dentre as músicas cantadas e comentadas, por Suzana e Nestrovski, vimos tesouros de artistas como Chico Buarque, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Zé Miguel Wisnik, Caetano e outros, mostrados com a sensibilidade com que Suzana Salles nos brindou, e a profundidade da análise e comentários das letras enquanto poesia, por parte de Nestrovski. Esse conjunto valeu-nos uma noite inesquecível e o sentimento de que será preciso muito tempo para que tudo, erudito ou popular, seja apagado pela poeira dos anos.
Otimista que sou, mais ainda por assistir a um espetáculo de tal nível, guardo a esperança de que as pessoas acordem a tempo de evitar que tais tesouros sejam levados pelo tempo e se transformem em remotas memórias.

quinta-feira, novembro 13, 2008

ESCOLA DEPREDADA

Confesso que fiquei estarrecido! Quando liguei a TV, um helicóptero mostrava imagens de adolescentes correndo sobre telhados e jogando telhas ao chão. Pensei estar diante de mais uma rebelião numa dessas assim chamadas unidades educacionais. Porém, na medida em que a imagem abria, constatei se tratar da Escola Estadual “Amadeu Amaral”, no bairro do Belenzinho, onde estudei na década de 50 e hoje com quase cem anos de existência, que estava sendo destruída por delinqüentes, numa briga entre alunos.
As câmeras mostravam carteiras e mesas jogadas no pátio interno, vidraças arrebentadas e nem o pára-raios escapou da fúria dos anormais.
Que indigência mental e moral! Lembrei-me dos tempos em que freqüentava aquele estabelecimento, quando os alunos entravam em salas de aula, em fila, sempre sob o toque da sineta do “seu” Júlio. Também me vieram à memória, os ensinamentos de dona Iracema, os quais não esqueci até hoje e que me serviram como alicerce daquilo que sou e do que construí.
Bons tempos aqueles, em que os mestres eram respeitados e valorizados. Na pedagogia simplificada daqueles tempos não havia espaço para malabarismos pedagógicos. As crianças aprendiam, e os que não sabiam repetiam o ano. Não era como hoje, quando políticas educacionais destrutivas, não obstante o objetivo louvável de permitir o acesso de todos à escola, colocam bons e maus alunos no mesmo patamar, fazendo-se um nivelamento por baixo e levando a um aprendizado cada vez mais deficiente.
Ser professor significava ter status, merecer respeito por parte de alunos, autoridades e sociedade. Os salários, se não eram nababescos, permitiam viver com decência, não precisando o docente recorrer a outros meios de subsistência.
É honroso para mim, ter em meu círculo de relacionamentos, professores (irmã, parentes, amigos). O exemplo maior está na figura de minha mulher, a qual vi durante todos esses anos, dedicar-se com todas suas forças ao magistério. Como eu, hoje ela não vê soluções a curto ou médio prazo mostrando que a decadência do ensino público seja um mal passageiro. Por enquanto, infelizmente, temos de ouvir afirmações tais como a de que “estudar não é necessário”. Parte das conseqüências dessa filosofia está estampada agora nos jornais.

sexta-feira, outubro 10, 2008

INTENÇÕES

Poesia escolhida em concurso, para participar do livro do X PRÊMIO ESCRIBA DE POESIA, da Prefeitura e Secretaria de Cultura de Piracicaba.







COLOCOU O BOMBOM
NOS LÁBIOS ENTREABERTOS
DA NAMORADA,
E COMO QUEM ESPERA PELO INCERTO,
COM A LÍNGUA TIROU DOS DEDOS
VESTÍGIOS DE DESEJOS.